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terça-feira, 16 de setembro de 2014

Aryane Silva


Preciso jogar tanta coisa fora, que me dá preguiça só de imaginar. Tenho que organizar minha coleção de canecas que estão em cima do guarda-roupas, acumulando a poeira da minha bagunça diária. Algumas roupas que eu guardo desde os meus quinze anos, mesmo sabendo que eu já tenho vinte e oito e seria mais inteligente doar do que usar. Uns sapatos que arrebentaram a fivela e estão com os solados gastos de tanto passos dados, que eu tenho plena certeza que jamais voltarei a calçá-los novamente. Colocar meus livros em ordem e não desmerecê-los em uma caixa de papelão dentro do quartinho esquecido. Recuso-me a acreditar que tive a coragem de jogar Hemingway e Drummond em um canto qualquer, como se fossem potes de plástico.
Ah! Por falar em potes, preciso desapegar de uns que perderam suas tampas, que eu guardo por alguma estúpida razão, assim como preciso dar um despacho decente para meus brincos viúvos, que perderam seus pares e aguardam dentro do porta-jóias à espera do milagre da ressurreição.
Meu criado-mudo precisa de um trato mais digno, já que tem me acompanhado tanto nesses últimos dias. Aliás, ainda bem que ele é mudo e espero que seja surdo também, para ignorar meus lamentos. Abro sua gaveta e ao ínvés de encontrar Neruda, Adélia Prado e Carpinejar (embora esse último tem causado certa relutância), encontro notas de supermercado, contas vencidas, propagandas e broches. Eu queria entender de onde adquiri este vício de guardar coisas e perpetuá-las. Eu preciso me desapegar dessa coisa toda, me desprender dessa tralha física. E, no fundo eu sei que isso não é tarefa difícil.
Mas agora, mais que urgente, necessito me desfazer dessa quinquilharia emocional. Me livrar de ressentimentos, portas e telefones na cara, pés na bunda e costas dadas. Abandonar esse retorno que vive querendo que eu dê um passo atrás, para que eu acredite que darei dois à frente depois, mesmo sabendo que isso é uma pegadinha do destino. Tenho que parar com esse ceticismo de quem ri da esperança dos outros, descartar conversas vazias, sair da roda do disse-me-disse. Afogar minhas angústias numa boa taça de vinho e torcer para a tristeza acabar quando eu der o último gole na bebida. Me desvencilhar de gente triste, gente avarenta, de gente que não sabe viver.
Isso! Eu preciso saber viver, colocar as mangas de fora, fazer caretas esquisitas no espelho, pintas as unhas de amarelo, tatuar frases feitas, comer fast food, comprar um All Star de cano alto, pegar um cachorro na rua e levar para casa, comprar um livro de piadas e gargalhar até ter feito mil abdominais, reaparecer depois de tantos anos e fingir que a mágoa lá atrás nunca existiu, brincar de queimada com crianças da vizinhança, ensinar os macetes de uma boa redação para meus sobrinhos, cantar Spice Girls alto pela casa e lembrar da adolescência, dançar pagode nas festas de família, gritar quando o mengão faz um gol, mesmo sem saber a quantas anda o campeonato, andar de patins, soltar bolinhas de sabão e ser feliz assim.
Sim, eu preciso voltar a ser quem eu era, a boba mais contente, a patética mais alegre. Voltar a ser normal, menos séria, menos conformada, menos preocupada com o amanhã.
Mas, antes disso, preciso me livrar de tudo que coage o meu sorriso e trava minha naturalidade, oprimindo minha essência. Tudo que não faz mais sentido manter.
Encher, amarrar, soltar no ar, até desaparecer.
-Aryane Silva-


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